Luz, muita.
Naquela que entra pela janela da casa antiga dos meus pais, vêm-se as pequenas partículas de ar que se tornam magicamente visíveis, flutuando nos feixes de luz projectados pelos buracos ovais dos separadores dos estores. A minha Mãe está em casa, de limpezas, e o meu Pai há-de estar a chegar do trabalho a qualquer momento. Soa demasiado a lugar-comum, mas é tudo grande quando se é pequeno, e toda a casa, que agora consideraria minúscula, é um mundo enorme por explorar para uma criança de 3 ou 4 anos.
Porque é que brinco com as molas, aquelas da roupa, não sei. Lembro-me delas no chão de tacos, e de me sentar junto das mesmas fazendo infindáveis comboios até me fartar e ir a correr para o sofá castanho da sala, em frente à televisão a preto e branco no armário ao lado do bar, feito num improviso de marceneiro pelo meu Pai, e cheio de garrafas de tons vivos com copos coloridos num mosaico de outras tantas cores.
Vivíamos junto à margem do Rio, numa casa arrendada num prédio de três andares, e passeávamos no jardim que ficava ao pé de uma Escola construída a poucos metros de casa. Casados no ano anterior ao meu nascimento, os dois filhos de operários dos caminhos-de-ferro aventuravam-se numa vida de incerteza, em pleno “apertar o cinto” dos inícios de 80, e, apesar das agruras económicas da altura, sempre foram, por muitos e largos anos, a minha âncora afectiva e moral, e a pedra basilar da educação que me tornou quem sou hoje. Não sei quão assustados estariam na altura com a perspectiva dos anos vindouros, mas nunca senti então outra coisa que não a sua constante presença, e guardo essas memórias com especial afecto e, sem querer parecer saudosista, alguma saudade.
Luz, e muita, outra vez.
Esta, passa por uma frincha do estore corrido, japonês, que temos na sala. Sentado no chão, encostado ao sofá, vejo as mesmas partículas, num feixe único, a flutuar no ar. Desta feita, contudo, estou bem mais velho, e já não brinco com molas a fazer comboios ou naves espaciais, entretendo-me antes no fútil exercício de zapping entre os oitenta canais que, para fazer jus à opinião já muito comum, raramente têm uma única escolha de jeito. E, de repente, tenho a estranha convicção de que o que sinto é mais que um deja vu, que é um verdadeiro momento de sincronismo, de repetição quase cósmica do círculo da vida.
É neste prédio de 3 andares em que agora vivemos que uma criança verá a luz entrar pela janela, num chão de madeira que mais parece de tacos, num apartamento que hoje considero minúsculo mas que ele terá como gigantesco de e fascinantes descobertas. É nesta casa, ao pé desta janela ao pé de um jardim ao pé de uma Escola ao pé de um Rio, que alguém criará momentos de magia, para sempre presos na sua memória com ternura e carinho infinitos, e deles falará aos seus filhos.
Serei eu – eu!... - o Pai que entrará pela porta vindo do trabalho no final do dia, no provado e eternamente repetido ritual de saudades diárias e reencontro de que bem me lembro, e que bem constituía um dos pontos altos do dia – quando, aos olhos de uma criança, uma família reunida representava, ali, todo o mundo em casa. E seremos os dois, eu e a minha mulher, a âncora afectiva e moral que levará esta criança para a sua idade adulta, e a tornará alguém orgulhoso de si mesmo e empenhado em levar a cabo o seu papel no mundo.
Na sala, encolho-me um pouco, fingindo ser mais baixo, mais pequeno, que de facto sou. Tento sentir de novo a magia desses dias solarengos da remota infância… Não sinto nada. A inocência não se revive, e essa magia está perdida, guardada, no cofre-forte da memória. Mas sinto, revigorada, a expectativa de uma nova magia que aí vem. De um verdadeiro momento Simba, em que a cria de leão se redescobre, adulto, com um filho nos braços, renovado, em mais um passo desse ciclo sem fim.
Assustado? Não. Honrado.
Vai ser bom ser Pai.
Blog privado
Há 6 anos
4 comentários:
Que texto lindo, adorei a luminosidade das tuas palavras, o teu regresso à infância relatado de uma forma tão bela!
Beijinhos e bom fim-de-semana,Sofia,Pedro e Joana
Lindo lindo.
Feliz dia da mulher.
Bravo! Bravo!
(de pé a aplaudir)
Adorei ler este texto, e apesar de não vos conhecer, sei que o vosso menino tem uns pais especiais :o)
É lindo ver pais babados, como o pai do meu bébé tb é!
Oh, que comovente!
Gostei muito das palavras de um pai babado...
Beijinhos
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